Esse é mais um conto que foi publicado pela extinta Editora Infinitum em uma de suas antologias. É um dos primeiros que escrevi. Aqui, o apresento em uma versão revisada.
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“Já vai acabar”, disse Cibele pra si mesma. “Coragem, você sabe que precisa fazer isso!”.
O suor escorria por todo seu corpo. Ela acelerou o movimento frenético para alcançar logo o clímax. Fechou os olhos para não encarar o rosto do homem deitado embaixo dela (como era mesmo o nome?) e para não deixar as lágrimas rolarem. Há muito deixara de sentir prazer no ato. Seus músculos doíam pelo esforço, a mente divagava.
Estavam todos enganados! Ainda jovem chegara a essa conclusão. Livros, filmes, revistas… todos errados! Não havia nada de romântico ou sedutor em ser um vampiro, tudo que havia era a frieza… e a culpa.
Cibele não tinha presas ou bebia sangue. Era uma vampira do mundo real. Uma vampira psíquica que se alimentava da energia vital de suas vítimas.
Foi na adolescência quando Cibele percebeu algo errado. A partir de então começou a sentir tonturas que não podia explicar, muitas vezes seguidas de desmaios e períodos de fraqueza. Em uma oportunidade, seu pai lhe falou sobre ela ter herdado dele algum tipo de desequilíbrio energético no seu chakra ou qualquer coisa assim, e que precisava viver como vampira dali em diante. Na época, a moça temeu pela sanidade dele. “Pobre, papai!” Como o julgara mal! Jamais o compreendera. Não até aquele fatídico dia…
Cibele sacudiu a cabeça para afastar as lembranças. Precisava manter-se focada, pois estava prestes a cruzar a última linha, a porta que jurou jamais atravessar. Um ato que durante anos sequer cogitou: tirar uma vida.
O ápice, enfim, chegou para ele. Já era tempo, Cibele não podia mais conter a expectativa. Uma sensação agradável a invadiu quando a energia começou a fluir para dentro de seu corpo. A vampira viu que o homem não resistia enquanto seu orgasmo tornava-se mais intenso e seus músculos enfraqueciam. Ela apertou mais os olhos, mordeu os lábios e renovou sua decisão de prosseguir até escoar o último resquício de energia… … …
“Ele está com sintomas de esgotamento físico,” disse a médica. “vamos aplicar uma bolsa de soro glicosado e deixá-lo em repouso absoluto.” Enquanto fazia recomendações, a doutora Cibele Andrade pôde ouvir claramente as piadas maldosas que passavam pela mente da enfermeira. Brincadeiras de mau gosto que logo seriam repetidas por outros funcionários do hospital sobre uma médica chegando no meio da noite, trazendo um homem vestido às pressas e com sinais de exaustão!
A situação da noite anterior não era muito diferente de quando descobrira seu vampirismo. Já quase uma mulher, apaixonada pelo namorado, Cibele decidiu se entregar. Sua primeira experiência sexual também foi a primeira vez em que absorvera as forças de outra pessoa. Foi na base do desespero que conseguiu interromper o dreno antes de escoar o namorado por completo.
Como queria contar com seu pai naquele momento, mas era tarde, ele havia abandonado a família. Talvez não fosse capaz de suportar a culpa de ter passado sua condição de vampiro à filha, ou não podia aceitar o fato de que sua garotinha precisaria transar como louca para continuar viva.
A doutora afastou-se da enfermeira de pensamentos maliciosos. Que tolice! Como pudera pensar que seria capaz de matar uma pessoa quando seu trabalho era salvar vidas? Para ela, a medicina era mais que uma paixão, era um estilo de vida. Não conseguia se imaginar vivendo de outra forma, desde a infância sonhara em seguir os passos da mãe.
Aquela mulher era seu modelo em tudo: carinhosa, dedicada, inteligente. Amava tudo que envolvia a figura materna, inclusive a profissão. Ao mesmo tempo, odiava tudo que a deixava triste, e isso incluía seu pai. Apenas quando ficou mais velha, Cibele compreendeu que as brigas entre os dois eram causadas pelas constantes infidelidades dele, mas como a mãe o amava muito sempre o perdoava. A filha, porém o desprezava sem saber toda a verdade.
Sim, porque Cibele também herdara dele uma condição que mesmo entre os vampiros psíquicos era rara. Só conseguia escoar energia através do sexo, enquanto os poucos vampiros que conhecera eram capazes de absorver suas vítimas pelo toque ou até por um simples olhar.
Mas esse contato com seus semelhantes só veio bem depois. Durante um longo tempo tivera que entender as regras do jogo sozinha. Precisou aprender a ligar e desligar a drenagem. Aprendeu a ouvir pensamentos e a ver a aura das pessoas, localizando dessa forma seus centros energéticos. Ironicamente, esse talento revelou-se muito útil na medicina: podia identificar desarmonias e nódulos que muitas vezes causavam doenças. Com o tempo, descobriria como solucionar tais problemas com a força do pensamento, levando a curas improváveis.
Para sua tristeza, tudo que conseguia era dispersar esses nódulos, nunca pudera apurar a técnica o bastante para escoar a energia dessa forma e continuava obrigada a recorrer ao sexo para suprir suas necessidades. A decisão de absorver pequenas quantidades de energia ainda hoje lhe pesava, mas tinha medo de causar algum dano permanente se drenasse uma única pessoa.
Quando foi trabalhar no dia seguinte, Cibele sentia-se confusa e acuada. Já lhe custava muito deixar alguém de cama, e acabara de perceber que jamais iria tirar a vida de outra pessoa. Sua situação ficava cada vez mais complicada. Perdera dois bons empregos por conta de seu “comportamento leviano”, e ser demitida outra vez era algo impensável! Não podia abandonar seu sonho! Tinha que diminuir o seu número de parceiros, e drenar mais energia da mesma pessoa parecia ser a solução.
Sabia bem do que precisava, ouvira de um vampiro que conhecera durante uma viagem de férias: um Doador. Não como as vítimas ocasionais, nem um namorado estável que ignorasse a verdade. O que precisava era de um Doador fixo, consciente de sua realidade. Ela não era uma pessoa sem recursos, podia oferecer uma vida confortável em troca de absorver pequenas quantidades de energia regularmente; além, é claro do fato de que esse individuo se tornaria seu amante. Restava agora uma questão elementar: quem seria o Doador? Onde encontraria alguém disposto a viver com uma vampira?
***
“Não dá pra negar,” pensou Henrique, admirando o corpo nu de Cibele. “Ela está muito mais bonita hoje do que quando vim pra cá!”. O rosto adormecido tinha uma aparência angelical e serena. Com o quê sonhava?
Ainda sentindo um pequeno cansaço (sensação a qual já se acostumara), Henrique levantou-se e foi até a cozinha procurar algo para repor as forças. Preferiu um suco natural, apesar do estoque de latas de Red Bull na geladeira. Continuava a pensar em como Cibele parecia autoconfiante, segura, em paz consigo mesma, e por que não dizer, feliz? Bem diferente dos primeiros dias.
“E quanto a mim, será que eu também mudei?”. Ele caminhou pelo grande apartamento até a sacada da cobertura do condomínio de classe alta em que moravam. Mesmo um pouco fria, a brisa noturna era agradável. Olhou para as luzes da cidade na rua. Onde estaria sua família? Era apenas uma curiosidade, bem entendido; não sentia falta de sua antiga vida, não mesmo!
Orfão de mãe, o segundo casamento do pai lhe trouxe uma madrasta que pouco se importava com ele. E quando o pai também morreu em um acidente de carro, a animosidade que ela sentia por Henrique evoluiu para um ódio quase patológico. O obrigava a tarefas humilhantes e disparava ofensas pesadas por qualquer razão.
Terminado o suco, Henrique precisou apoiar-se no parapeito. Acontecia, ás vezes, de Cibele errar a mão e absorver um pouco a mais de energia. Ele ainda lembrava bem de quando a conhecera.
Estava na sala de espera do consultório da dra. Andrade, “gentilmente” convidado a acompanhar sua madrasta. Quando a médica abriu a porta para atender a paciente, cravou um olhar faminto no rapaz! Nunca antes, Henrique havia se sentido tão desejado! O quê as duas conversaram ele jamais soube, mas a conversa foi longa. Após mais de uma hora, a doutora veio sentar ao seu lado flertando abertamente, perguntando se ele tinha namorada e se não gostaria de mudar daquela casa onde enfrentava tantos problemas.
Parecia bom demais pra ser verdade, mas o que tinha perder? Os primeiros dias foram como um sonho. Cibele o compreendia tão bem que parecia ler sua mente (o que mais tarde descobriu ser verdade), porém ele não era tão ingênuo a ponto de acreditar que tudo viera a troco de nada.
Não foi fácil aceitar que Cibele era uma vampira. Por algum tempo, Henrique teve medo de que ela mordesse seu pescoço e acabasse com sua vida a qualquer momento.
A descoberta estremeceu a relação. Por vezes ele planejou partir, contudo sempre que pensava nisso, ela o deixava trancado ao sair para trabalhar – com o cuidado de deixar a dispensa abastecida. É claro que o rapaz podia chamar a polícia, mas não queria criar problemas a ela. Não tinha dúvidas de que a doutora o amava. Era possessiva, ciumenta, e seus sentimentos vinham da necessidade de praticar o vampirismo, mas acreditava que serem sinceros.
Quando deu-se conta disso, ele decidiu fazer um teste: disse à amante que tinha necessidade de algo que o ajudasse a passar o tempo durante a sua ausência. Um videogame, quem sabe? No dia seguinte, ela apareceu com um PlayStation 3 e uma grande coleção de jogos. Aos poucos, Henrique começou a viver cada vez mais às custas de Cibele: um computador novo a cada seis meses, um smart phone, o melhor pacote de TV assinatura disponível no mercado, uma TV com tela de LCD (seria a hora de trocar por um modelo com tecnologia 4K?). Não importava quão caros ou desnecessários eram os seus pedidos, ela atendia a todos sem fazer nenhuma objeção.
O vento esfriou um pouco mais. Henrique voltou para dentro. Reparou que a chave do apartamento estava em cima do criado-mudo sem nenhum cuidado.
Será que a vampira não temia mais que a abandonasse? Apesar de tudo, não deixava de ser um prisioneiro, estaria tão disposto a abandonar por completo a liberdade? E se algum dia ela decidisse trocá-lo por alguém mais jovem? Com essas ideias na cabeça, ele apanhou a pequena chave. Como era leve.
Cibele estava dormindo. Poderia facilmente partir e se tornar, enfim, o senhor do seu próprio do destino. Era adulto agora, a decisão era somente sua…
No dia seguinte, ao acordar Cibele tateou pela cama à procura de seu amado… e, naturalmente, lá estava ele. Aonde iria? Quem abriria mão de viver com uma bela mulher em um apartamento sofisticado, tendo tudo do bom e do melhor? No fundo, também sentia-se feliz.
Quando o casal terminou de fazer amor, ela aninhou um esgotado Henrique em seu peito. Entre um beijo carinhoso e outro, ele perguntou: “Que tal a gente mudar pra um apartamento com vista para o mar?”
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