Ladrões, sequestradores, pedófilos, estupradores, assassinos… Esse tipo de gente não me assusta; lidar com o pior da Sociedade é meu trabalho. Mas o que vou fazer agora, isso sim, mexe comigo. É o futuro da minha vida familiar que está em jogo.
Confiro minha aparência no espelho do fundo do elevador. Dou uma ajustada na armadura policial modelo copsuit de placas nanopolimetrícas azuis sobre um colante preto à prova de balas, fogo, eletricidade e sei lá mais o quê. Pesa menos de um quilo, mas o manual garante que aguenta até um tiro de canhão de plasma.
— Nervosa, Sandra? — pergunta o capitão Álvaro, sua hierarquia superior garante uma copsuit um pouco mais sofisticada. No espelho, o vejo dar aquele sorriso com o canto da boca, enquanto encara minha bunda, me comendo com os olhos. Nenhuma novidade.
Não dá para negar que, com quarenta e um, ele é um homem maduro e bonito, mas hoje em dia, com o preço da bioescultura, beleza não significa nada. Eu mesma já fui bioesculpida diversas vezes. Quem não foi? Se pensa que vou trair meu marido só por causa de um sorriso de galã de novela, é melhor tirar o cavalo da chuva.
Tenho trinta e seis, não estou mais na idade de cair nesse tipo de lábia barata. A única razão do Álvaro estar comigo é porque minha patente de sargento é baixa demais para me permitir ir sozinha ao escritório da Nexus.
— Só estou ansiosa, capitão.
O elevador para no último andar. Escuto o barulhinho da câmera de segurança nos focando.
— Reconhecimento facial concluído — diz uma voz eletrônica. — Capitão Álvaro Monteiro, presumo que tenha escoltado a sargento para uma audiência comigo.
— É isso mesmo, Nexus.
— Irei recebê-la agora, sargento.
Entro sozinha na única sala do andar. As paredes, o teto e o piso pretos estão cobertos de pequenos dispositivos circulares. São holo-projetores que se ativam no momento em que ponho os pés na sala. De repente, estou em um escritório executivo dos mais sofisticados, com janelas panorâmicas que permitem olhar os arranha-céus vizinhos de cima.
É claro que tudo não passa de um holograma, assim como a mulher semi-transparente diante da mesa. A aparência é atraente, apesar de careca; usa um traje colado que a cobre do pescoço aos pés, desenhando uma silhueta perfeita demais. Nenhuma mulher de verdade poderia ter um corpo igual a esse, nem com toda bioescultura do mundo.
— Sandra Pontual, sargento da polícia, cidadã produtiva classe sigma sem nenhuma queixa registrada — ela repassa minha ficha com sua voz metalizada. — Bem-vinda à nexus da central, parte integrante do mainframe do neurocontrole. Em nome do Conselho Urbano, agradeço-a pelos serviços que presta à Sociedade. O que posso fazer por você?
É óbvio que ela sabe por qual razão estou aqui; provavelmente sua rotina de socialização está dizendo para puxar conversa. Aqui na central, a gente se acostumou a chamá-la de Nexus por causa de sua saudação, mas na verdade, ela não tem nome. É “apenas” a inteligência artificial que comanda o sistema principal do neurocontrole, o que significa que está conectada com praticamente todos os computadores da megalópole: de sistemas de segurança à qualquer carro nas ruas, de escritórios governamentais à dispositivos pessoais.
Existem até teorias conspiratórias que dizem que o Conselho Urbano é só uma fachada e Nexus é quem realmente nos governa.
Ela me dá arrepios.
— Hoje cedo, renovei meu pedido de licença maternal — respondo. Em seguida, minha voz soa mais frágil do que eu gostaria: — Quero permissão para ter um filho.
— Estou ciente de sua requisição, é a segunda vez que a faz — a mulher-holográfica caminha até a janela, como se fosse mesmo uma vista real. — Tem ideia de quantos pedidos de licença maternal recebo diariamente? Nossa Sociedade encontra-se muito perto de esgotar os recursos naturais do planeta. Se enchermos o mundo com novas bocas para alimentar, a humanidade não sobreviverá por mais que algumas décadas. Por essa razão, me vejo obrigada a recusar nove em cada dez pedidos. Estou dizendo isto para deixá-la consciente do quão difícil é obter autorização para engravidar, principalmente, em se tratando de uma cidadã que contribuí ativamente para a Sociedade. Durante seu período de férias maternais, seria preciso realocar outra pessoa para exercer suas funções.
— Eu já sei de tudo isso, Nexus. Você fez esse discurso da última vez. Apenas me de uma resposta.
— Sua licença foi recusada.
— Vou encaminhar um novo pedido.
— Recomendo que pense bem antes de fazê-lo. Lembre-se que se eu negar a mesma requisição três vezes, não haverá uma quarta. Em contrapartida, seu cargo concede uma licença maternal automática após uma década de serviço e você já está na metade deste período.
Ela só pode estar brincando.
— Você sabe que em cinco anos, vou ter passado da idade permitida para engravidar. Está me pedindo para desistir de ser mãe.
— A lei é a lei, sargento Pontual. Não há nada que eu possa fazer. Tenha um dia…
— Espere! Como posso melhorar minhas chances?
Nexus leva a mão ao queixo e olha para cima, fingindo que está pensando. Novamente, é o seu programa de socialização rodando. Ela é capaz de processar dados a uma velocidade inimaginável; já sabia a resposta no instante exato em que terminei de falar.
— Uma recomendação de seu superior direto. Somando seu histórico exemplar à recomendação, concederei a licença. Tenha um dia bom e produtivo!
O escritório holográfico desaparece e me vejo de volta à sala escura, forrada de sensores. Nunca saí, na verdade. As portas abrem e meu superior direto me encara de dentro do elevador.
Tenho de convencer o Álvaro a fazer a tal recomendação e acho que sei o que será preciso para isso. Assim que entro, ele nota meu desânimo e pousa a mão no meu ombro.
— Ela recusou? — respondo com um aceno. — Lamento, Sandra. Quer desabafar?
Tenho vontade de dizer: “quero que tire a mão de mim”. Ao invés disso, banco a desamparada:
— Ajudaria bastante se eu tivesse uma recomendação sua. Pode fazer isso?
— Não tem nada que eu não faça por você, meu bem. Só tem uma coisinha primeiro… — ele dá aquele sorriso de novo e aperta o botão de parada de emergência. — Vem cá!
Sou puxada pela cintura e quando me dou conta, a língua do Álvaro está dentro da minha boca. Uma de suas mãos agarra meu cabelo, a outra ergue minha coxa, fazendo meu quadril se encaixar no seu. Tenho de admitir, ele tem pegada. Parte de mim quer deixar rolar. Ele consegue o que quer, eu consigo o que quero; todos ficam felizes. Outra parte sente repulsa e o empurra.
— I-isso está errado. E-eu amo meu marido.
— Eu sei, calma. A gente vai usar proteção e tudo, não vou te criar problemas.
— Não posso.
— Você é quem sabe, Sandra — ele aperta o botão, reiniciando o elevador. — Se quiser a recomendação, sabe onde me encontrar.
***
— Que calor! — diz Marisa. Minha parceira é uma década mais jovem que eu e veste uma copsuit idêntica à minha. — Não dá para aumentar o ar, Sandra?
É uma tarde quente. Nossa aeroviatura é apenas mais um veículo entre centenas que deslizam rapidamente, centímetros acima de uma das dezenas de vias da autopista. O trafego flui depressa. Desde que a Nexus assumiu o controle do trânsito, acabaram os congestionamentos.
Nas margens da via, outdoors tridimensionais alternam entre propagandas e mensagens institucionais do tipo: “É um bom dia para ser produtivo”, “A Sociedade em primeiro lugar” e “O neurocontrole está sempre com você”.
— A merda do ar está no máximo! — respondo com a cabeça quase explodindo.
Eu devia ter socado a cara sorridente do Álvaro, em vez ficar calada depois de afastá-lo. O que mais me dá raiva é ter ficado com tesão. Quis ligar para o meu marido, contar que a licença foi recusada, dizer como me sinto… Mas não telefonei. Suspiro tentando me acalmar.
— Desculpa, estou uma pilha de nervos.
— Esquece a babaca da Nexus! Vai conseguir a licença na próxima.
Só que para conseguir, vou ter de trair o homem que amo e não sei se sou capaz disso. Pior. Tenho medo de descobrir que sou.
— Mudando de assunto, Marisa… Você já dormiu com o capitão Monteiro, certo?
— Eu e metade das mulheres que trabalham na central. Por quê? Tá pensando em dar pra ele?
— Claro que não! — minto.
— Menos mal, não precisamos de uma dupla de vadias. Uma de nós de tem que ser a policial boazinha e não sou eu.
O sinal de alerta do painel toca. Nunca fiquei tão feliz por receber uma chamada.
— Aeroviatura oito-um-cinco, central falando — ouço a voz de Nexus. — Um aerocarro desconectado da rede do neurocontrole afasta-se do perímetro urbano pela via trinta e sete, a dois quilômetros de sua posição. A análise da placa revelou que o veículo não tem permissão para deixar a cidade.
— Entendido, central. Oito-um-cinco iniciando procedimento de abordagem.
O pára-brisa muda para o modo de realidade aumentada, exibindo informações em tempo real, além de destacar a rota que devemos seguir. Luzes vermelhas e azuis acendem ao longo da aeroviatura. Acelero e nos conduzo rumo à via trinta e sete. Os outros aerocarros vão abrindo espaço à medida que nos aproximamos. Eles não têm escolha. A essa altura, todos já receberam o aviso para nos deixarem passar; se não obedecerem, a Nexus simplesmente assume o controle, realiza a manobra e aplica uma multa por “obstrução da lei”.
Alcançamos a via que conduz para fora da cidade, aqui não há trânsito. A trinta e sete é uma pista elevada às margens do setor industrial.
Avisto o aerocarro suspeito de longe e eles também nos avistaram; os leitores de realidade aumentada do pára-brisa indicam que aumentaram a velocidade. Uma tentativa inútil de fuga. Não é mais como naqueles filmes de ação antigos que meu avô assiste, onde qualquer um faz a polícia comer poeira. Nossa aeroviatura pode ir tão rápido quanto uma nave de corrida modelo speedster. Ainda assim, essa atitude diz muito sobre nossos suspeitos:
— Dirigir um aerocarro desconectado e deixar a cidade sem permissão são infrações leves — digo a Marisa. — Não valem a encrenca que estão comprando.
— Devem estar transportando algo de valor. Talvez drogas ou mercadoria roubada.
Alcançamos os suspeitos num piscar de olhos. Marisa apanha o dispositivo conectado ao alto-falante para dar o último alerta:
— Aqui é a polícia, encostem ou seremos obrigadas a usar de força — em resposta, o motorista coloca a mão para fora da janela, apontando uma pistola laser para trás e realiza uma série de disparos. O pára-brisa não fica nem marcado. — Não devia ter feito isso, idiota!
— Central, aqui é oito-um-cinco solicitando liberação de armas de fogo para abordagem corpo a corpo.
— Armamento liberado, oito-um-cinco — responde Nexus. Ah, isso ela é rápida para liberar.
— Marisa, use uma carga eletromagnética.
Minha parceira manipula a tela de toque do painel, um ruído hidráulico na dianteira da aeroviatura indica que o pulso foi armado. Um globo de energia é disparado, atingindo o aerocarro suspeito e desativando seu motor. O fundo do veículo se choca com o asfalto e ainda dá um cavalo de pau antes de parar virado na direção contrária, com a porta do motorista no lado da mureta.
Um compartimento junto ao meu banco abre, revelando uma peacemaker, calibre 9 mm. O compartimento de Marisa contém uma pistola igual. Aterrisso a aeroviatura de frente para o aerocarro suspeito, de maneira que ambas possamos ficar protegidas pelas portas blindadas. Saltamos com as armas em punho.
— Saiam com as mãos para cima! — grita Marisa.
— Por favor, não atirem — a porta do passageiro abre e aparece uma moça de uns dezoito anos chorando, ela usa um vestido que não esconde a barriga saliente, embora não seja gorda. Marisa tinha razão, havia algo de valor no aerocarro: uma garota grávida. — Só fugimos porque não temos licença.
— Saia do veículo, motorista! — Marisa está agitada, o que não é bom. Um defeito da minha parceira é ter o dedo do gatilho nervoso.
— O que vai acontecer comigo? — pergunta a jovem aos prantos.
O que vai acontecer é que ela será levada para um hospital municipal, onde vão interromper a gravidez e descartar o feto. Depois ela vai ter de responder por gestação ilegal, um crime grave.
Chega a me passar pela cabeça a ideia de deixá-los ir. É só uma moça, caramba, tão jovem! Mas há um porém: “O neurocontrole está sempre com você”. Se liberar esses dois, vou ter de dar explicações para a Nexus, o que vai acabar de vez com minhas chances de receber uma licença maternal.
Porra, por que eu tinha de me deparar com um caso assim logo hoje? Em lugar de responder a pergunta, dou voz de comando:
— Diga ao seu namorado para sair do aerocarro.
— Saia daí, amor. É melhor… Não!!!
O motorista salta do veículo de arma em punho. No primeiro momento, vejo que ele é só um moleque, ainda mais jovem que a namorada; no segundo, o rapaz abre fogo com a pistola laser.
Me escondo atrás da porta da aeroviatura, Marisa é mais ousada que eu. Sua peacemaker cospe dois disparos de plasma que atingem o peito do moleque em cheio.
Ele desaba e a moça grávida se desespera. Ela ainda está chorando quando a ambulância chega, mas é tarde. O rapaz já estava morto.
Enquanto os médicos cuidam da moça e os forenses estudam a cena, Marisa acende um cigarro eletrônico. A deixo fumando encostada na mureta da via trinta e sete e volto à aeroviatura, quero ter privacidade para fazer uma ligação.
Pelo viva-voz do painel, escuto o capitão atender:
— Oi, Álvaro, sou eu. Pensei melhor e, bom, eu quero aquela recomendação.
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