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Todos ficaram calados, ouvindo os corvos crocitarem. As aves banqueteavam-se de uma vintena de viajantes mortos. O sangue escorria ainda fresco, tingindo o solo desértico de vermelho; uma indicação de que o massacre fora recente.
A brisa constante lambia a pele queimada de Sol de Al Jaber, emaranhando grãos de areia em sua barba e agitando levemente sua cafia, o pano preso à cabeça por uma fita; o que ele usava exibia estampas quadriculadas e era marrom claro, a mesma cor do abeie, a capa que trazia sobre a túnica branca.
— Que horror! — a voz de Jade tremeu. O xador púrpura que vestia lhe cobria o corpo e o rosto, deixando apenas a testa e os olhos de cílios longos à mostra. Olhos que procuraram os de Al Jaber com uma expressão aflita.
Ele viu o mesmo temor no semblante de seus guardas: homens feitos armados com cimitarras, mas a possibilidade de estar diante de uma obra do famigerado bando do Escorpião era o bastante para fazer até o beduíno mais corajoso sentir um calafrio.
— Venha comigo… — indicou um batedor. — Vamos inspecionar os corpos.
— Tenha cuidado — disse Jade.
Al Jaber e seu companheiro desceram dos cavalos e seguiram duna abaixo. Após uma breve oração, examinaram os mortos que, pelos rastros na areia, viajavam a camelo. No entanto, os animais haviam sido levados, assim como bens e valores.
— Aqui — chamou o batedor. Al Jaber aproximou-se do cadáver de um sujeito robusto, com uma farta barba grisalha e a face esquerda deformada por uma queimadura ainda quente em forma de escorpião.
— É a marca! Temos de ir embora o mais rápido possível.
Já afastavam-se quando uma voz feminina os fez se voltarem:
— Por favor, sahib! — chamou uma mulher embaixo de uma pilha de cadáveres. — Tenha piedade de uma infeliz.
Uma vez livre, ela desdobrou-se em agradecimentos:
— Abençoados sejam! — uma icharb violeta cobria o pescoço e os cabelos da mulher, sem ocultar o rosto de tez escura; ela vestia uma túnica preta, com desenhos brancos bordados nas barras. As roupas estavam amarrotadas e manchadas, mas podia-se notar que não eram trajes baratos. Estava abraçada a um grande embrulho de tecido.
— Junte-se a nossa caravana, senhora, e diga-nos como se chama.
— Meu nome é Jamile, sahib.
Al Jaber queria fazer milhares de perguntas, mas tinha pressa de fugir dali. A caravana que liderava era composta por duas dúzias de homens montados em corcéis, conduzindo um número igual de camelos carregados de tecidos e especiarias.
Não possuíam cavalos extras, então Jade levou Jamile na garupa de seu palafrém. Agora que a forasteira se acalmara, Al Jaber viu que ela era dona de uma beleza singular. O rosto exibia traços suaves e a pele escura aparentava ser macia ao toque; os olhos eram claros e vivos. Não demorou para os guardas ficarem encantados com a nova companhia. Nem mesmo Jade escapava de seus flertes.
— Aqueles eram seus parentes? — perguntou à Jamile.
— Guardas do califa — a resposta veio num tom de pêsames. — Foram enviados para me escoltarem ao palácio.
— Acaso é uma foragida? — disse Al Jaber.
— Ao contrário, sou convidada de honra para o aniversário do califa, daqui a dois dias — da trouxa, Jamile retirou um pandeiro, sedas azuis e o cabo de um sabre dourado. — Sou uma dançarina e devo me apresentar na festa.
— Ah! — exclamou Jade. — Então não é qualquer Jamile, mas sim aquela que é conhecida como a melhor e mais bela dançarina do deserto.
— As pessoas costumam exagerar — disse Jamile, com falsa modéstia.
— É certo que não houve exageros quanto à sua beleza.
A dançarina estufou o peito.
— Se for do seu agrado, sahib, dançarei essa noite para meus salvadores. É o mínimo que posso fazer por terem me resgatado.
Al Jaber não precisava perguntar para saber o que seus homens pensavam sobre ver uma mulher bonita dançar. Imaginou que seria uma boa forma de elevar a moral da caravana, abalada pela visão da morte.
— Ficaremos honrados, embora não possamos levar o crédito por tê-la salvo dos homens do Escorpião. Me parece que o fez sozinha, fingindo-se de morta.
Jamile se encolheu na sela, estreitando o abraço que a prendia à Jade e a seus pertences.
— O bando do Escorpião chega com passos demasiado macios e espadas velozes como o vento. Não são homens, sahib, são outra coisa.
Al Jaber sabia que por onde o Escorpião passava só o que restava eram homens mortos de rosto marcado enquanto tudo o mais era levado: animais, valores e também as mulheres. No entanto, viajava o bastante para desacreditar daquela conversa de “outra coisa”.
O Sol escondeu-se no horizonte e a caravana parou em terreno plano para montar acampamento.
— Posso perguntar para onde vão? — disse Jamile, quando apearam.
— Nosso destino é o mesmo — respondeu Al Jaber. — Sou um mercador e espero fazer negócios na cidade durante a festa do califa.
— Me acompanhe, senhora — disse Jade. — Terei o maior prazer em ajudá-la a se trocar.
— É um felizardo por ter uma esposa tão prestativa, sahib — disse Jamile, ao que Jade desviou o olhar, corando pela abertura do xador. — Falei algo errado?
— A senhora minha esposa permanece em minha casa.
— Ah, compreendo — um sorriso malicioso aflorou nos lábios sensuais da dançarina. — Essa é a razão de Jade esconder o rosto?
— Este assunto é particular — disse Al Jaber, não sem certa cortesia.
O acampamento foi montado sob a luz das primeiras estrelas. Al Jaber garantiu que todos de sua caravana tivessem um bom abrigo, inclusive os animais. Por segurança, aumentou a quantidade de homens que ficariam de vigia. Resolvidas essas questões, inspecionou os espigões e cordames que mantinham as barracas de pé.
— Você, não entende… — ouviu a voz abafada de Jade vindo de dentro da barraca onde Jamile se preparava. A contragosto, encostou o ouvido na lona carmesim. — Ele me ama!
— É o que eles sempre dizem — rebateu a dançarina. — Se amasse, não te obrigaria a se esconder do mundo.
— É melhor assim… acredite.
— Bem, ele não está aqui agora. Deixe-me ver seu rosto — através da lona, Al Jaber distinguia com dificuldade as silhuetas. Lhe pareceu que Jamile estendia a mão para o véu púrpura do xador. — Te ensinarei o que verdadeiramente é o amor.
Ele teve um sobressalto. Teria invadido a tenda, não fosse o tapa de Jade na mão da dançarina.
— Eu disse não!
— Pois bem, farei como deseja — e Jamile acrescentou num tom sedutor. — Quando se espera pela refeição, o sabor é melhor.
Al Jaber afastou-se preocupado. Começava a lamentar ter auxiliado aquela intrometida. Não a deixaria ficar sozinha com Jade novamente ou correriam o risco de ver a verdade exposta.
Sem poder fazer nada por hora, foi para a grande tenda, onde o aroma de chá de hibisco melhorou um pouco seu humor. Tapetes com listras bege e grená forravam o chão, almofadas haviam sido espalhadas.
A excitação dos guardas era nítida. À exceção daqueles que estavam de vigia, todos se dirigiram para a tenda a fim de ver o espetáculo. Os homens vibraram quando Jade surgiu com um pandeiro, acompanhada por Jamile, enrolada num manto azul com padrões bordados em linhas de ouro; os braços cruzados sobre o peito seguravam o manto e o sabre pintado de dourado.
Jade veio sentar numa almofada perto de Al Jaber.
— Ela a incomodou? — perguntou ele.
— Nada com que eu não possa lidar.
Jamile ajoelhou-se e depositou o sabre dourado no tapete. Seus cabelos negros caiam sobre os ombros em longos círculos, enfeitados com uma rede de ouro de onde pendiam safiras que lhe adornavam a testa. Com um olhar, ela sinalizou para Jade.
O pandeiro silvou quando a dançarina ergueu-se, serpenteando lentamente. Jamile deixou cair o manto, revelando toda a beleza e luxúria de seu traje de dança do ventre.
O bustiê era cravejado de safiras costuradas com linho dourado; um anel enfeitava o umbigo, preso a um par de finos cordões de ouro que davam a volta na bela barriga; mais safiras ornamentavam a cinta e as pulseiras; a longa saia de seda azul possuía aberturas na metade das coxas e ficava presa aos tornozelos.
Os quadris sedutores moveram-se devagar, gerando ondulações que se espalharam pelo corpo. Exclamações e suspiros sucederam a cada movimento. Com o pandeiro, Jade tentou acompanhar o ritmo ditado pela dançarina. A intensidade aumentou. Com gestos precisos, ela dobrou os joelhos, apanhou o sabre e equilibrou o dorso da lâmina sobre a cabeça.
A essa altura, os guardas soltavam uivos lascivos. Mais contido, Al Jaber reconheceu em seu íntimo que jamais vira tanta habilidade e sensualidade em uma dança. Com o molejo do pescoço, Jamile fazia a espada girar. Os quadris, a barriga, o busto, as pernas, os braços e até os dedos. Todo o corpo da dançarina parecia ter assumido um aspecto fluído.
Ela se virou para o lado oposto e soltou o pano que escondia a parte de cima das costas. Todos prenderam a respiração ao ver um enorme escorpião tatuado em linhas brancas.
— Eu não tinha visto isso — Jade interrompeu o pandeiro.
O sabre dourado saltou da cabeça para a mão da dançarina e abriu a garganta do guarda mais próximo com um movimento veloz como o vento.
— Agora! — gritou Jamile.
A tenda foi invadida por mais de trinta mulheres vestidas como odaliscas e armadas com cimitarras e arcos. Flechas precisas voaram e cabeças foram cortadas. Pegos de surpresa, muitos caíram antes mesmo de tomarem consciência do ataque.
Al Jaber só precisou de um instante para saber que estavam perdidos. Agarrou a mão de Jade e correu em qualquer direção, cortando uma saída da tenda com sua própria espada.
Do lado de fora, viu seus vigias caídos, quase todos com as cimitarras ainda no cinto. “O bando do Escorpião chega com passos demasiado macios”, dissera Jamile. “Não são homens, sahib, são outra coisa”.
Ela falara a verdade.
Um corcel passou correndo sem sela. Em seu desespero, Al Jaber sequer saberia dizer como foi capaz de montar com apenas uma mão e puxar Jade para a garupa. Agarrou a crina do animal e fustigou suas ancas, partindo em disparada. A única esperança era perderem-se na noite antes que Jamile e seu bando dessem conta da fuga.
Porém, não tardou para ouvir gritos femininos ferozes atrás deles. Uma flecha passou raspando. O segundo disparo perfurou seu ombro. A dor o fez perder o equilíbrio e Jade, abraçada a sua cintura, foi ao chão com ele.
Jamile e suas odaliscas cavalgaram ao redor dos fugitivos em meio a gritos e gargalhadas. A um brado da líder, todas pararam. Jade apanhou a cimitarra de Al Jaber e se posicionou de forma protetora.
— Olhe ao redor, Jade, todas já fomos como você: esposas e concubinas leais aos caprichos masculinos — disse Jamile. — Mas nos libertamos do jugo dos homens e agora podemos fazer o que quisermos, até mesmo nos amar — ela se inclinou na sela e deu um beijo lascivo em uma odalisca. — Junte-se a nós, torne-se nossa irmã.
— Vocês não compreendem…
— Não faça isso! — protestou Al Jaber. Jade o ignorou, arrancando o véu e o pano que cobriam sua cabeça, revelando o rosto bonito de um rapaz de dezesseis anos.
— … não posso ser irmã de ninguém.
— Eu não compreendo — disse Jamile. — Por quê?!
Segurando o ombro atravessado pela flecha, Al Jaber forcejou para ficar de joelhos.
— Porque as leis do califa proíbem que dois homens amem-se — Jade se abaixou para ampará-lo e o beijou.
— Ao menos morreremos juntos, meu amor.
Jamile estudou os amantes e respirou fundo:
— Acreditem ou não, sou uma mulher romântica, do que tipo que se comove com um amor proibido. Devemos deixá-los ir, irmãs? — as odaliscas soltaram suspiros apaixonados.
— Receberão a marca, senhora? — uma delas mostrou um ferrete em forma de escorpião.
— Para que todos saibam que alguém encontrou nosso bando e sobreviveu?! — e se dirigiu aos homens no centro do círculo. — Tenho ouvidos por todo o deserto, sahib; se contarem meu segredo, ficarei sabendo e vocês provarão a picada deste Escorpião. Agora vamos, irmãs! Um saque espera para ser dividido!
Al Jaber e Jade foram deixados sozinhos com o corcel sem sela. Jade ajudou seu amante a montar e pôs-se a guiar o animal, não para a cidade do califa, mas para outro rumo.
Nos anos vindouros, o Escorpião continuaria a ser o flagelo das caravanas, enquanto Jamile continuaria a levar o encanto de sua dança por todo o deserto.
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